domingo, 20 de julho de 2025

Um caso resolvido em silêncio.


Suzana encostou o capacete riscado na bancada de metal da sala de arquivos e puxou a cadeira com o pé, como quem não pede licença nem pra Deus. Gutierrez já estava lá, folheando papéis embolorados como se o cheiro de mofo fosse perfume de arquivo confidencial.

— Sete décadas de mistério e ninguém nunca parou pra contar as letras? — ela perguntou, enquanto amassava um chiclete na boca como se fosse um acelerador mental.

Gutierrez deu de ombros. Estava com aquele olhar de quem já sabia que ela ia resolver tudo em três frases, mas se divertia vendo o processo.

— Austrália, 1948. Um corpo na praia. Nenhuma identificação. Apenas um bilhete com duas palavras: Tamám Shud. E uma página arrancada de um livro persa. O Rubáiyát.

Suzana sorriu de canto. Um sorriso torto, de quem já entendeu tudo antes do segundo parágrafo da notícia.

— O último verso. "Está terminado". Poético demais pra suicídio. Meticuloso demais pra assassinato. E aquele código... — Ela puxou a folha com os cinco blocos de letras — ...tudo cifra por frequência. Troca as mais comuns e... voilà.

Gutierrez estalou os dedos. Ela odiava quando ele fazia isso.

— "The little duet", "Sane", "Romance", "Fantasy"... "Note to the gone one". Isso é uma despedida. Isso é uma carta de amor.

— Isso é o tipo de coisa que só se escreve pra alguém que nunca poderá ser nomeada — Suzana disse, agora com o olhar mais baixo. — Alguém que já foi. Ou que ficou e teve que calar.

Ela passou o dedo pelas letras como quem traça o rosto de um fantasma.

— E aí vem o nome, escondido no meio: Anise. Como se fosse real. Uma mulher de verdade. Mas que não podia aparecer em lugar nenhum.

Gutierrez arqueou a sobrancelha.

— Esposa de um figurão de Adelaide. Escândalo impossível. Ela leu os jornais. Reconheceu o código. Chorou em silêncio. Morreu levando o segredo.

— E alguém mais decifrou. Alguém mais entendeu tudo — Suzana completou, agora abrindo o zíper da jaqueta como quem encerrava uma missão. — E foi pago pra se calar.

Ela levantou, pegou o capacete e travou o olhar em Gutierrez.

— Mistério resolvido. Mas não dá pra prender um cadáver. Nem reviver uma lágrima. O que sobrou… é só poesia.

Gutierrez a seguiu sem dizer palavra. Suzana não precisava de aplausos.

Do lado de fora, o motor da CBX rugiu feito verdade engasgada.

Ela olhou pro céu de nuvens baixas e falou como quem falava sozinha — ou com os mortos:

— Ninguém esconde amor com código. Só com covardia.

E desapareceu na curva como quem resolve crimes só pra dormir em paz.

quarta-feira, 16 de julho de 2025

Desencantando - parte 06

 Deitaram-se bem próximos, o cansaço vencendo até o medo. A aranha já era só uma lembrança peluda e distante. Suzana ajeitou a mochila de travesseiro improvisado e, no silêncio espesso do túnel, soltou:


— Guty, eu tava lembrando daquele dia...


— Que fizemos piquenique no parque?


Ela riu, surpresa.


— Nossa! Me assustou agora. Como sabe? Lê pensamentos?


— Você fez o mesmo olhar perdido... o mesmo sorrizinho. Aí, lembrei daquele dia também.


— Parece um capítulo do Richard Bach...


— Quem?


— Richard! Bach! — enfatizou, quase rindo.


— Tipo gaúcho? Ricardo Baaach?


— Deixa pra lá...


Suzana soltou uma risadinha cansada e cantarolou baixinho:


— "Se eu não te amasse tanto assim..."


— Ah, essa eu conheço!


Ela virou-se de lado, olhos brilhando mesmo no escuro.


— Então, meu amor... eu tava lembrando da nossa conversa no parque. Você me disse uma frase linda. Digna de letra do Nando Reis. Como era mesmo? Que eu era... raio?


Gutierrez riu baixo.


— Não era raio... Era bem melhor que isso.


Ela esperou, como se soubesse que ele lembraria.


Ele virou o rosto em direção ao dela e disse, com a voz quase feita de brisa:


— Suzana, você é lua, é raiz, é verso e tempestade.


Ela sorriu, surpresa, o coração batendo de um jeito esquisito.


— Guty... que coisa linda! De onde você tirou isso?


Ele hesitou um segundo, e então respondeu com a verdade mais bonita da noite:


— De um coral, na minha cabeça. Todas as vezes que penso em você.


Na escuridão daquele túnel, cercados de incertezas, monstros e umidade, era ali que os dois se tornavam mais humanos: quando o medo já tinha passado, mas o carinho ainda estava por perto.


E isso...

Esses dois corações apaixonados sabiam entender.

segunda-feira, 19 de maio de 2025

Desencantando. Parte 05

 O frio apertava mais a cada curva daquele túnel escuro e silencioso. Mesmo com os casacos grossos, as lanternas na testa e os sacos de dormir amarrados às mochilas, o clima úmido começava a cobrar seu preço. As paredes de pedra suavam como se chorassem o tempo, e os passos de Suzana e Gutierrez ecoavam como se estivessem sendo seguidos.


Foram três noites dormindo no chão duro, com Suzana insistindo em arrumar o local com um carinho quase maternal — mesmo sabendo que Gutierrez zombaria. Mas ele, ao contrário do que fazia parecer, não zombava: guardava no olhar um cuidado silencioso. Às vezes deixava que Suzana dormisse primeiro, fingindo que ainda precisava verificar alguma coisa no mapa. Outras vezes, ela acordava e o via acordado, em silêncio, protegendo-a.


Entre uma parada e outra, Suzana sacava de sua mochila pequenas delícias que havia preparado: pão de mandioquinha com alecrim, geleia de amora feita por ela mesma, café solúvel e bolachinhas em formato de estrela. Gutierrez fingia que não ligava, mas sempre era o primeiro a pedir mais. “Você estraga um homem desse jeito”, dizia com aquele sorriso torto.


Na segunda noite, quando a escuridão parecia mais pesada que o normal, eles ouviram um ruído estranho. Não era o barulho da água pingando, nem o som abafado de algum animal pequeno. Era um arrastar. Algo grande. Algo... com patas.


“Você ouviu isso?”, sussurrou Suzana, já com a mão na Glock.

“Deve ser só uma ideia da sua cabeça, amor”, respondeu Gutierrez, tentando tranquilizá-la. Mas ele mesmo já estava com a lanterna em punho.


Quando viraram a curva do túnel, a luz revelou a criatura: uma aranha gigantesca, do tamanho de um pneu de caminhonete. Suas pernas peludas se esticavam nas paredes úmidas, e seus olhos, numerosos e brilhosos, pareciam farejar o medo.


Suzana engoliu em seco. “Não vamos atirar, não sabemos o que isso pode causar aqui.”

Gutierrez assentiu, impressionado. “Vamos contornar devagar. E torcer pra ela não estar com fome.”


Foi a primeira vez que Suzana preferiu não liderar. Ela deixou Gutierrez ir à frente, e mesmo com o coração acelerado, confiava naquele homem de jeito bruto, mas com uma coragem que se enraizava nela como as raízes de uma figueira em pedra.


Quando já estavam longe da criatura, sentaram-se para recuperar o fôlego. Gutierrez, rindo nervoso, comentou: “Se a gente sobreviver a isso, quero um bolo de cenoura com cobertura de chocolate na volta. E você de avental.”

“Nem em sonho, Gutierrez! Mas... o bolo eu posso pensar.”


Eles riram. E seguiram. Sabiam que o pior ainda estava por vir — e o destino do túnel ainda era um mistério.

Desencantando. Parte 04

 


A sala secreta sob a casa de Gutierrez cheirava a terra antiga e ferro oxidado. Nenhum som vinha da superfície. Só o silêncio, pesado, de quem está prestes a descobrir algo que não pertence mais ao presente.


O diário do avô jazia aberto sobre uma mesa de madeira improvisada. A luz amarelada da lanterna de Suzana tremia contra as páginas desgastadas, revelando linhas escritas à mão, em tinta azul desbotada, e frases enigmáticas espalhadas entre parágrafos de aparência comum.


— Ele sempre me falava sobre o tal “Tesouro do Pirata Zulmiro” — disse Gutierrez. — Eu achava que era uma brincadeira, uma fábula de família... ou uma metáfora.


Suzana girava a régua vazada sobre a página com precisão, observando cada encaixe como se fosse a última peça de um quebra-cabeça antigo. O gabarito, uma peça de metal finamente entalhada, havia caído do meio do diário pouco antes. Com seus vazados, encaixava-se perfeitamente sobre certos trechos — revelando palavras escondidas entre as linhas comuns, como um enigma antigo.


Ela parou.


— Aqui. Veja.


Gutierrez se inclinou. As palavras, ocultas sem o gabarito, agora se formavam nítidas:


“Não é ouro. Não é mapa. É passagem. O palco é entrada. A guerra é memória. Zulmiro era meu nome em código.”


O ar da sala pareceu mais denso. Gutierrez empalideceu.


— Espera... Zulmiro não era um pirata?


— Era um disfarce — disse Suzana, com a voz baixa. — O avô usava esse nome como código. Tesouros... eram pistas. Mas não pra riquezas.

Pra algo muito maior.


— Uma passagem...?


Ela apontou para o rodapé do diário.


— Tem mais aqui: “Se um dia eu não puder contar... que o tempo mostre a verdade. Mas cuidado: algumas verdades se movem.”


Eles se entreolharam. O ar parecia mais pesado do que antes. Atrás deles, a parede leste. Na parte baixa dela, um símbolo reaparecia: o mesmo da régua.


Suzana já estava de pé.

— Gutierrez... acho que encontramos a primeira porta.

E não temos tempo a perder.

sábado, 17 de maio de 2025

Entre Túneis e Estradas.

 Entre Túneis e Estradas

Letra de Desirée de Souza Cavallin Veloso


Na curva da estrada, o vento a chamar

Lembranças que voltam, difícil apagar

Com a Glock na cintura e a alma em brasa

Ela segue sozinha, mas nunca se atrasa


Nossa heroína, entre sombras e luzes no chão

Carrega segredos no seu coração

No ronco da moto, o passado ressoa

O nome de um amor perdido ainda ecoa


Entre túneis e estradas, entre o sim e o talvez

Ela busca respostas que ninguém mais fez

Nos olhos, o brilho de quem enfrentou

O amor e a verdade, o medo e a dor


Cada pista, um suspiro, um passo a mais

Nos becos da alma onde o tempo não traz

As palavras caladas, as cartas marcadas

E um beijo perdido nas madrugadas


Se for preciso, ela volta ao início

Rasga o destino e refaz o feitiço

Porque amar também é resistir

E é nos abismos que se aprende a seguir


Entre túneis e estradas, ela vai prosseguir

Com a CBX e a vontade de ir

Nossa menina que o mundo tentou apagar

Mas que sozinha aprendeu a viver e lutar


domingo, 11 de maio de 2025

Desencantando. Parte 03

Suzana partiu ao amanhecer rumo a Pontal do Paraná, onde mantinha uma casa de praia. Embora preferisse encarar estradas com sua moto CBX750, desta vez optou pelo carro, pois precisava transportar pás, lanternas, cordas, ferramentas e suprimentos para a jornada.

Enquanto dirigia, lembrava-se das histórias que ouvira sobre o Pirata Zulmiro. Segundo relatos, Zulmiro, cujo verdadeiro nome era Francis Hodder, foi um oficial da Marinha Britânica que, após matar um colega, tornou-se pirata e escondeu-se em Curitiba, adotando o nome brasileiro. Diz-se que ele teria enterrado parte de seus tesouros na Ilha da Trindade, uma ilha deserta no Atlântico Sul, e outra parte em túneis subterrâneos na região das Mercês, em Curitiba.

Após reunir os materiais necessários em sua casa de praia, Suzana retornou a Curitiba. Ao chegar, encontrou Gutierrez examinando o diário de seu avô, que continha mapas e anotações sobre o tesouro de Zulmiro. Juntos, decidiram explorar os túneis mencionados nas lendas, iniciando uma jornada que os levaria a desvendar segredos enterrados há mais de um século.

Desencantando. Parte 02



Mesmo assim, Gutierrez levantou devagar, como se lutasse contra o cansaço dos últimos dias, e abraçou Suzana com força. Sem dizer uma palavra, a beijou com urgência e ternura — um gesto que carregava medo, alívio e saudade acumulada. Ela não resistiu. O nó em sua garganta se desfez por um instante. 


— Achei que você estivesse morto — sussurrou ela, ainda envolvida em seus braços.


— Eu também temi por isso. Mas precisava sumir até entender o que estava acontecendo… e até provar que não era culpado.


Ele a guiou até uma cadeira, sentou-se ao seu lado e abriu uma gaveta antiga. De lá, tirou um diário encadernado em couro surrado, com páginas amareladas. 


— Encontrei isto entre as coisas do meu avô, escondido dentro de um baú. Ele sempre falava do velho Zulmiro, o pirata que teria enterrado um tesouro em Curitiba e que assombrava o Setor Histórico. Achei que fosse apenas uma lenda de família… até ver os mapas e os códigos aqui dentro. Resolvi investigar enquanto me escondia. E quanto mais eu lia, mais percebia que talvez... esse tesouro realmente exista.


Suzana passou os olhos pelas páginas, cheias de anotações em caligrafia trêmula, símbolos náuticos e coordenadas parciais. 


— E agora? — perguntou ela, tentando assimilar o absurdo e o real que se misturavam.


— Agora, preciso da sua ajuda. Quando sair daqui, vá até sua casa de praia em Pontal do Paraná. No depósito, pegue mais pás, lanternas, cordas, ferramentas, comida... tudo o que pudermos carregar. Essa jornada vai ser difícil, mas se eu estiver certo... vai mudar tudo.


Suzana assentiu em silêncio. Levantou-se devagar, os olhos fixos nele. Depois, parou à porta e olhou por cima do ombro, a voz carregada de emoção contida. 


— Mas por que, Suzana? Por que você foi tão longe por mim, arriscou sua carreira, sua vida... por alguém que todos julgavam culpado?


Ela sorriu de lado, aquele sorriso que sempre aparecia quando não cabiam explicações simples. 


— Eu sou assim, Gutierrez. Quem poderia entender?




Desencantando. Parte 01 ( Continuação de "Tudo pode acontecer ")



A chuva fina tamborilava sobre o para-brisa do carro enquanto a delegada Suzana observava, pela terceira vez, a fachada da casa de Gutierrez, no bairro Mercês. Um sobrado discreto, de janelas verdes e paredes bege, que agora parecia guardar segredos além dos que ela já conhecia. Seu noivo e sócio desaparecera há três dias, e nenhuma pista concreta surgira — a não ser aquela intuição que a acompanhava desde os tempos de academia: Gutierrez estava vivo. E inocente.


Ela abriu o portão, ignorando o rangido enferrujado, e entrou. Parou diante da porta da cozinha, respirou fundo e tirou do bolso do casaco uma pequena chave dourada. A chave reserva que Gutierrez lhe dera meses antes, com um sorriso tímido e a frase: “Confiança também mora aqui.” Suzana girou a chave. A fechadura cedeu com um leve clique.


Dentro, tudo parecia em ordem, mas havia uma estranha marca no chão — como se algo tivesse sido arrastado.


Movendo o armário de mantimentos, revelou uma velha tampa de madeira. Suzana a ergueu com esforço, revelando uma escada de pedra escura, úmida, que descia até a escuridão. Seu coração disparou.